terça-feira, fevereiro 01, 2011

Death

A coisa mais injusta sobre a vida é a maneira como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso.
Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante pra poder aproveitar sua aposentadoria. Aí você curte tudo, bebe bastante, faz festas e se prepara para a faculdade.
Você vai para colégio, tem várias namoradas, vi
ra criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe, passa seus últimos nov
e meses de vida flutuando. E termina tudo com um orgasmo! Não seria perfeito? - (Charles Ch
aplin)


Depois vem uma assinatura preta, para mostrar os pólos da minha versatilidade, se assim lhe agrada. Foi no momento mais escuro antes do alvorecer. Dessa vez, eu tinha ido buscar um homem de uns vinte e quatro anos, talvez. De certo modo, foi uma coisa bonita. O avião ainda tossia. A fumaça vazava de seus dois pulmões. Quando ele caiu, fez três sulcos profundos na terra. Agora suas asas eram braços serrados. Nada de bater, nunca mais. Não para aquela avezinha metálica.

Às vezes eu chego cedo demais. Apresso-me, e algumas pessoas se agarram por mais tempo à vida do que seria esperável.

Após uma pequena coleção de minutos, a fumaça se esgotou. Não restava mais nada para acontecer. Primeiro chegou um menino, com a respiração desordenada e o que parecia ser uma caixa de ferramentas. Com grande inquietação, aproximou-se do cockpit e observou o piloto, avaliando se estava vivo, o que aliás ainda estava, àquela altura. A roubadora de livros chegou talvez trinta segundos depois. Anos se haviam passado, mas eu a reconheci.

Estava arfante.

Da caixa de ferramentas, o menino tirou, quem havia de imaginar, um ursinho de pelúcia. Estendeu a mão pelo pára-brisa partido e o colocou no peito do piloto. O ursinho sorridente sentou-se, aninhado entre os destroços amontoados do homem e o sangue. Minutos depois, arrisquei a sorte. Era o momento certo. Entrei, soltei a alma dele e a levei embora gentilmente. Só restaram o corpo, o cheiro minguante de fumaça e o ursinho de pelúcia sorridente.

Quando chegou toda a multidão, é claro que as coisas haviam mudado. O horizonte começava a se acinzentar. O que restava de negrume no alto já não passava de um rabisco, e desaparecia depressa. O homem, em comparação, estava cor de osso.Pele cor de esqueleto. Uniforme amarrotado. Tinha os olhos frios e castanhos — feito manchas de café —, e a última garatuja lá do alto formou o que me pareceu ser uma forma curiosa, mas conhecida. Uma assinatura.

A multidão fez o que fazem as multidões. Enquanto eu passava, cada pessoa ficou brincando com a quietude daquilo. Uma pequena mistura de movimentos desconexos das mãos, frases abafadas e guinadas mudas, constrangidas. Quando me virei e olhei para o avião, a boca aberta do piloto parecia sorrir.

Uma última piada obscena.

Mais um final de piada humano.

Ele continuou amortalhado em seu uniforme, enquanto a luz mais cinzenta fazia uma queda de-braço no céu. Como acontecia com muitos outros, quando comecei a me afastar, pareceu haver de novo uma sombra ligeira, um instante final de eclipse — o reconhecimento da partida de outra alma.

Sabe, assim por um momento, apesar de todas as cores que afetam e se atracam com o que vejo neste mundo, comigo é freqüente captar um eclipse quando morre um ser humano.

Já vi milhões deles.

Vi mais eclipses do que gosto de lembrar.

A Menina Que Roubava Livros, Markus Zusak

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